quinta-feira, 24 de março de 2011

Cucusio


Véspera de S. Nicolau e toda a população na rua: uma mixórdia de grotesco e de caligens, de lama e gritos, de gestos confusos e de novelos pastosos que se acastelam lá no alto e barram o céu de horizonte a horizonte em pesadas cortinas sobrepostas. Vem a cerração e a chuva pegada e tão miúda que amolece o granito. Das ruas irrompem sucessivos magotes, num clamor de inferno. Na noite ressoam gritos, urros, e clarões de archotes revoluteiam tornando-a mais densa e profunda: fisionomias e gestos surgem de repente como aparições e logo se somem no pez. É uma mescla de negrume e fogo, de braços que se agitam, de doida ventania e chuva cuspinhenta. Os tambores rufam sem interrupção — dir-se-ia que o planeta estoira farto de sonho inútil — e do nada, iluminados a vermelho, brotam bamboleando e somem-se logo sem aparência de realidade, o arco medievo e a mole rendilhada da Sé, para depois a novo clarão ressurgirem só por momentos com a abóbada, o Cristo, as colunatas e os fantásticos recortes de muralha e sombras que tomam corpo e se amontoam nos vastos fundos onde o clarão não penetra. Uma derrocada em tropel, um jacto vivo de escuridão, um burgo de sonho entrevisto que o vento leva consigo.
A turba avança, a praça transborda: há milhares de bocas que gritam ao mesmo tempo. Aquele mar humano oscila, cresce, clama e dispersa-se. Quando os archotes se apagam, fica só a noite e o ruído; avivam-se os fogaréus e voltam a entrever-se as faces, as bocarras abertas pelos risos estúpidos, rasgados de orelha a orelha.
— S. Nicolau! S. Nicolau!...
É, na véspera da festa, o dia das posses, em que desde tempos imemoriais certas famílias estão na obrigação, que a populaça não perdoa nem perde, de dar, uns castanhas, outros lenha, vinho, pão, uma árvore. Forma-se o cortejo. Já estrondeiam os primeiros compassos da charanga, que desce a rua a passos marciais, archotes à frente. Um reboliço, mais berros, rufos desesperados, uivos, maltas que desaguam de outras vielas recônditas e a multidão que oscila e se espraia até à muralha da igreja. Em cima a abóbada negra do céu goteja lama e as névoas arrastam-se lentas e esponjosas, bambinela atrás de bambinela, pegam-se às paredes e deformam-nas, desagregam-se, suspendendo–se nas arestas do granito como grandes farrapos de luto. Os uivos redobram. O mesmo pé-de-vento parece que faz redemoinhar a canalha e galopar no céu os grossos novelos de fumo.
— A câmara! aí vem a câmara!...
Pendões balouçam-se, inclinam-se como velas sacudidas pelo temporal, a que se agarram meia dúzia de náufragos. Logo mais alto, se ouvem os clamores e a charanga ataca as primeiras notas duma marcha de guerra. Abre o cortejo o presidente do município, imponente e grave, com o pendão erguido; seguem-no, solenes, o Pinheiro Careca e outros tipos cerimoniosos, de sobrecasaca e chapéu alto, sob a chuva incessante. Há um vaivém: a mó de gente empurra-se e rodopia, mas organiza-se afinal o cortejo, depois de desordens e protestos; das tabernas irrompem os últimos matulas de suíças; e o céu todo lama desce, desaba, imenso, gelado e fétido, sobre a triste humanidade. Fúnebre, lá consegue o Testa, de cara rapada e olho em alvo, abrir a marcha com o pendão erguido ao vento.
O Careca pega com sofreguidão a uma borla, a charanga segue a passo cadenciado, e por último os magotes anónimos e confusos.
— S. Nicolau! S. Nicolau!...
E tudo aquilo, mar de uivos, treva, archotes, homens e fêmeas, urros e clarões, jorro desordenado e imenso, se engolfa nas ruas estreitas, numa interminável e ensurdecedora bicha. Aqui e além o fogaréu dum archote: dum lado a casaria, do outro a muralha antiga, compacta e bárbara, a que a noite dá dimensões monstruosas.
[…]
Por fim um jorro humano estaca diante dum prédio emudecido e escuro, os clamores e a música cessam e a bicha, depois de ondular, atende ansiosa. Novelos sobre novelos as nuvens continuam lá em cima a sua desordenada e eterna correria sem fito.
O pendão camarário oscila, há um baque, e, grave como quem cumpre um rito, o Testa destaca-se do grupo e avança limpando da careca o suor das grandes solenidades. Diante do prédio, no silêncio e na noite, três vezes chama:
— Cucusio! cucusio! cucusio!...
Nada. Ninguém responde, e um frémito percorre a turba que espera sempre, milhares de cabeças erguidas no ar, as bocas abertas como peixes diante da casa negra e cerrada. Para o fundo no negrume outros, e mais outros envoltos na escuridão, atendem também como quem espera um milagre. E ouve-se no silêncio a chuva cair, miúda, pegajosa, eterna. Pela fresta duma janela lá se escoa por fim uma ténue claridade — e ao fundo estremece, silenciosa e compacta, a canalha comovida e atenta, até que, avançando com imponência mais dois passos, o Testa, como quem invoca, implora e ordena, torna:
— Cucusio!...
Sente–se abrir o postigo do prédio e uma voz comovida responde afinal ao apelo:
— Pronto, meus senhores, cá está o Cucusio!...
E logo assoma ao peitoril do primeiro andar, alumiado pela chama vacilante da vela, um monstruoso traseiro — como, desde tempos imemoriais, é obrigação daquela família, na véspera do santo, transmitida religiosamente de pais para filhos, mostrá-lo à vila. A charanga ataca o hino, os tambores ao mesmo tempo rufam, os urros estrugem, o pendão oscila levado pelo Testa, no alto daquela onda, e o sr. Anacleto corre sem ver nem ouvir, desorientado.
Raul Brandão, A Farsa (1903), cap. III.

CLUBE DE TEATRO APRESENTOU AUTO DO DÍZIMO DE URGEZES




Centenário da República e os 150 anos do nascimento da Senhora Aninhas evocados na tradição

A homenagem à Senhora Aninhas, mãe dos estudantes, nos 150 anos do seu nascimento foi a temática central do “Auto do Dízimo de Urgezes” deste ano, efeméride a que seria acrescentada o centenário da República. Dois em um, que recriou a loja da Senhora Aninhas (num cenário bem concebido pelo Clube das Artes) e nos transportou ao ano da república e do cometa Halley, em 1910, durante uma ceia animada de pica no chão (moina ou enfarta-burros na gíria nicolina), supostamente destinado à degustação vampiresca do animal e do seu sangue e ao ensaio do Pregão Nicolino.
Uma cena habitual nesses tempos, como o próprio folheto do “espectáculo” recordava, transcrevendo uma passagem do pregão de 1942:

Guardava e cozinhava um furto de galinhas
Com infinda paciência, a boa Ser’Aninhas
E às noites – quanta vez – se o bando reunia
À volta da lareira – ó ceia consolada!-
Espírito e chalaça – a guitarra gemia
Nas mãos do Zé Roriz, até de madrugada …
Era assim, era assim … E como tudo passa!
Sabia-se viver com arte e graça!

Quanto à peça propriamente dita, representada pelo Clube de Teatro, orientado pela docente Anabela Silva e formado maioritariamente pelos alunos do 9º. A, todos capricharam nas interpretações, com especial destaque para a Senhora Aninhas (Patrícia Moura), e os estudantes José Pedro Carvalho e Rui Miguel Melo, bem acompanhados pelo coral do 6º. ano, que sob a batuta (melhor dizendo o piano)da professora de Educação Musical Gabriela Caldelas, entoaram e cantaram os hinos de S. Nicolau e de Guimarães.
E como da ceia nem cheiro a frango, nem tão-pouco umas simples moletes, à moda da Senhora Aninhas, foi concedida a palavra o pregoeiro Manuel Silva (Tiago Lemos) que deitando faladura, declamaria, em tom de ensaio, alguns excertos do pregão de 1910:

Tende tudo a morrer de dia para dia
Tal como aconteceu à velha monarquia
Que aqui tivera o Berço, em tempos já remotos
E depois de assistir a guerras, terramotos
Se lutas sociais – a inesperada sorte
Arrebatadamente, a fez cair de morte!
(…)
Intrépidos heróis! Perante vós me inclino;
Salvasteis Portugal, abrindo-lhes um destino
De Liberdade, Amor, de Paz e de Justiça
Hoje podeis juncar a gloriosa liça
Com ramos d’oliveira e coroa de louro,
Pondo o 5 d’Outubro em grandes letras d’ouro!

Depois, a evocação do passado deu lugar ao presente e aos nicolinos de hoje.
Deste modo, em tom satírico q.b. , irreverência comedida e sem censura prévia visível, perante algum vernáculo de circunstância e calão vicentino, o Auto do Dízimo 2010 libertar-se-ia em mais de cinco centenas de quadras, tal e qual como havia sido proferido em 4 de Dezembro, na sede da Junta de Freguesia de Urgezes:

Que dizeis da nação Uma aventura na escola
Desta nova legislatura? Novo Estatuto d’Aluno …
Em matéria d’ educação Antes queríamos a bola
Só mudou a criatura E um feriado opotuno

Estais agora sob alçada E como vão os docentes
E com toques de ternura Vossos profes estimados?
Mas quase não mudou nada Coitados, andam doentes
Nesta nova aventura … Foram todos congelados …

Para o ano poderá haver mais …
Álvaro Nunes

terça-feira, 22 de março de 2011

As Maçãzinhas

A escola e a comunidade: a montra da Farmácia Santo António

Eis o carro vencedor!

Nicolinas 2010

MEMÓRIA DESCRITIVA DO CARRO NICOLINO PARA O DESFILE DAS MAÇÃZINHAS



O carro alegórico representará a loja da Senhora Aninhas, mãe dos
estudantes, que se situava na Rua de Santa Maria,nº. 57, junto ao
edifício do liceu da época (actual Câmara Municipal).
Pretende homenagear os 150 anos de nascimento da popular senhora,
venerada pelos estudantes pela sua bondade e ao mesmo tempo o I
Centenário da República.
Assim, o carro simulará um alegre jantar de estudantes, na loja da
senhora Aninhas, em 1910, no qual estes ensaiam o Pregão da época.
Neste, poderão constar alusões à época, como por exemplo à passagem do
cometa Halley.
Deste modo, irão em cima do carro 4 a 6 estudantes trajados de capa e
batina negras que deverão:
- mostar um ambiente de alegria e gritar ocasionalmente: Viva a
Senhora Aninhas, Viva a República!
- nas paragens do cortejo declamar partes seleccionadas do Pregão de
1910, que no final serão acompanhadas por toques de caixas e bombos, a
cargo do CEF 1, que trajados com as vestes de trabalho nicolino
encerrerão o nosso cortejo.
No solo desfilam ainda 18 a 20 rapazes vestidos com trajes de 1910 e
tempos da República, que poderão apresentar coreografia alusiva, tendo
por base as suas cartolas e bengalas.
O carro portará, na frente e traseiras e ainda nos taipais laterais
dísticos alusivos à identificação da escola e alusões à Senhora
Aninhas, extraídos de pregões antigos e/ou jornais da época.

O carro está sujeito a concurso, sendo o júri constituído pela Câmara
Municipal, geralmente a Vereadora da Cultura, um representante da
Associação dos Velhos Nicolinos e um representante da Casa da Marcha
Gualteriana que visualiza o desfile, habitualmente, na Biblioteca Raul
Brandão, em frente ao edifício da Câmara. Logo, deve programar-se uma
paragem do carro nessa área e proceder à encenação acima citada.

Álvaro Nunes

Dízimo de Urgezes 2010

AUTO DO DÍZIMO DE URGEZES

Que quereis vós, estudantes
Donde vêm tais fregueses?
Somos simples visitantes
Vimos pelo Dízimo d’Urgezes

Isto já não é o que era
Tradição já não se usa
Não aceitamos espera
Não admitimos recusa

Outros tempos são agora
Não há lugar a usanças
Olhai que saltais fora
E entrareis noutras danças

Não há borlas ou fiados
Que a crise muito aperta
Se os tendes entalados
A banca tem perna aberta

Armai-vos vós em finos
E carapaus de corrida
Somos jovens, nicolinos
Venha comida e bebida

E como vai por Urgezes
Como vai nossa capital?
Como todos os portugueses
Uns vão bem, outros mal

Já cá tendes o Intermarché
O Hiper mais dos chineses
Não há salários ou cachet
Para tantos dias e meses?

Nas contas de todos os meses
Pr’a comer, beber e cagar
Valem-nos os ciganos e chineses
E o crédito, pr’ poder pagar

Mas até houve festa
A S. Estêvão, patrono
Pr’a foguetes sempre resta
Algum dinheiro d’ abono

E veio o Centro Escolar
E um parque de lazer …
Não é mau este folar
Mas muito há ainda a fazer

De Cavez a de Guimarães
De Arosa até Lordelo
Computa nosso Magalhães
Ninguém levanta cabelo

E das obras na cidade
Prá capital cultural?
Um Algarve de publicidade
E as obras no Toural

E que dizeis da nação
Desta nova legislatura?
Tal como a educação
Só mudou a criatura

Estais agora sob Alçada
E com toques de ternura
Mas quase não mudou nada
Nesta nova aventura …

Uma aventura na escola
Novo Estatuto d’ Aluno …
Antes queríamos a bola
E um feriado oportuno

E como vão os docentes
Vossos profes estimados?
Coitados, andam doentes
Foram todos congelados …

Mas vieram novas metas
Que se dizem educativas
Vamos todos ser atletas
Vai ser tudo na desportiva

E esses vossos estudos
Como vai essa ciência?
Há marrões e cabeçudos
Mas pouca inteligência

Na cabeça é só piolhos
Na orelha brinquinhos
Pareceis piratas zarolhos
Aves d’ aviário, franguinhos …

E como vai Portugal
Como vai esta nação?
Entre a gula e o frugal
Da retoma à recessão

Nosso primeiro Zé Trocas
Manda apertar o cinto
Que se deixe d’ engenhocas
Que o povo anda faminto

Qual então a vossa aposta
Que me dais vós de conselho?
Apenas temos por resposta
Que não vai a passos de coelho

Então o que abre Portas
Caros jovens, nicolinos?
Esse só fecha comportas
Escotilhas de submarinos

Todos andam a meter água
Num país aos solavancos
Mas ao BPN (a)paga a mágoa
O nosso Teixeira dos Bancos

Não sois vós contribuintes
Nada tendes a reclamar
Mas dos pais somos pedintes
Também queremos mamar

Não há dinheiro bastante
O TGV não vai d’empurro!
Antes manter uma amante
Ou a pão- de- ló um burro

Há que pagar portagens
É preciso novo aeroporto
Faremos greve às viagens
Qu’ isto vai dar prá torto

Muda o mundo numa semana
Nem sempre do povo é a perda
Essa treta já não me engana
Mudam as moscas, fica a merda

Do governo para as empresas
Para os bancos ou assessorias
Todos ficam em boas mesas
Boas reformas e mordomias

Agora só se vai de cana
Para paraísos tropicais
Vale a pena ser sacana
E aparecer nos jornais

Já se sabe que a corrupção
Usa luvas muito finas
Nem precisa de sabão
E pr’alguns já há vacinas

E que dizeis ao casamento
Entre lésbicas e gays?
Os chifres vão ter aumento
Nesta troca de papéis

Nicolinos, que se passa
Por que estais tão abatidos?
Passa mas é a massa
Qu’ estamos bem fodidos/cozidos

Fala-se que vem o FMI
Nicolinos, estai alerta!
Chamem mas é a AMI
Que até o rabo s’aperta

Mas faz bem soltar os gases
Energia limpa, renovável
E se formos bem eficazes
É um bem a ser exportável

Ó meu rico S. Nicolau
S. Estêvão e S. Gualter
Castigai-os todo a pau
Dai-lhes um bom clister

Rufai hirtos vossas caixas
Erguei livres vossas vozes
Aproveitai bem as rebaixas
Qu’isto nem dá pr’a nozes

E como vai nosso Vitória
Que conquistas prometeram?
Do berço reza a história
Que até um Bebé venderam

Iremos este ano à UEFA
Ou à Taça dos Campeões?
Achamos difícil a tarefa
Para quem não paga milhões

E vamos ter novas obras
Prometidas pelo nosso Milo
Serão obras ou manobras
Ou outro Pimenta em estilo

No centenário da República
Que república desejais?
Somos pela escola pública
Somos pelas regalias sociais

Terá a República eleições
Para já as presidenciais …
Cá para meus botões
Penso que haverão mais

Entre um Lopes e um Nobre
A que poucos darão Cavaco
Um Alegre se descobre
Na tristeza deste buraco

Rompei as peles e bombos
Para que servem as baquetas?
Dai-lhes forte nesses lombos
Vossa chupetas são as tetas …

150 anos são passados
Que nasceu a Ser'Aninhas
Mas mantêm-se os fiados
Os padrinhos e as madrinhas

Ser'Aninhas, mãe dos estudantes
Metei lá em cima umas cunhas
Ponha os preços como dantes
Não os deixe meter as unhas

Rufai hirtos os tambores
Erguei alto vossas vozes
Tomai as maçãs d’ amores
Que vos saibam como as nozes

Nozes, maçãs e figos
Mais um cheque careca
Que nesta crise, amigos
Nem dá para uma caneca

E a beber sede comedidos
Qu’a sede não acaba agora
Já estamos bem bebidos
E já o reforço demora

Pago um fino com tremoços
Esta será a nossa posse
Não penses que dás os ossos
Não nos enganas com tosse

Não darei nada qu’ engrosse
Vosso estado alegrete …
Calai-vos e venha a posse
Um presunto e um cacete

Por S. Nicolau, rufai um toque
Em vossas caixas e bombo
Caixa só de Super-Bock
E um bom bife do lombo

Agora que o dízimo tendes
Se cumpriu esta tradição
Ainda que não vos emendes
Estais em nosso coração

Viva pois S. Nicolau
Viva o povo e a tradição
O legado não é mau
Mas vem tudo por ração

Ide agora com a certeza
Publique-se em editais
Com firmeza e clareza
Para ano haverá mais …


Álvaro Nunes

sábado, 19 de março de 2011

As Posses de Urgezes

«Josias, Emanuel e Valério, eram órfãos da roda de S. Domingos entregues à colegiada como aprendizes coveiros. Já Epifânio e Hilário eram coreiros informados com três anos, dados e cumpridos na função. Suas vozes dominadas já faziam missas cantadas no templo de Santa Maria de Guimarães, hoje da Senhora da Oliveira. Ora, estavam acometidas funções de camaradagem a Epifânio e Hilário pois seriam já estreitos conhecedores dos rituais velhos do senhor S. Nicolau patrono e protector das crianaçs e meninos estudantes, dos pequenos pescados, dos ladrões e dos comerciantes. O dia de S. Nicolau era desejado por toda a estudantada que, neste dia, tinha alforria para dar largas à sua folia, depois de tantos dias, semanas e meses de cantochão. À solta pelos campos, os jovens em gritos e gritas acordavam os nabais e as couves dos quintais por onde trilhavam nas frias madrugadas e em braçadas se apropriavam para, com água géliada da ribeira, produzir um caldo der nabos de couves, ou somente de unto porcino desviado da arca da salmoira. Acordavam assim, aquecendo o corpo e a alma, também agradecendo a S. Nicolau a liberdade e libertinagem, permitida em seu dia. Depois, em busca de pau de lenha para o Santo Nicolau apanhavam a castanha aos molhos para saborosos magustos. Toda esta juventude tinha no Santo uma inspiração, um respeito e devoção que os fazia construir afeição pela feita e seus fazedores. Muitos eram já velhos padres, senhores de hirsutas barbas, agarrado a terceiras pernas de madeira, para espreitar as brincadeiras dos mais novos, neste dia. Era assim que os cinco correios da colegiada , depois da noite animada seguiam agora para Urgezes onde, segundo a recomendação do priorado estava ele obrigado a cumprir o dízimo da dita. Era esta uma quinta que na freguesia lá existira e que velhos frades tinham doado para com o dízimo patrocinar a festa ao Santo Nicolau. A posse de Urgezes era já de fama neste tempo, pois tinha nozes, figos e castanha. Uma rasa de milho para o pão e um naco de porco e ainda salpicão, haveriam eles de tomar no lavrador António da Quinta da Carreira. O dízimo ainda possuía água pé e maçãs pequenas e perfumadas que acabavam dadas às meninas que encontravam pelo caminho. Ao chegar, os cinco devotos ao Santo Nicolau recebidos pelo frade sineiro que também era cozinheiro e fazia gala disso. Gostava com alegria de tomar um bom quartilho de tintol e de o acompanhar com naco de carne de plovo, seco ao sol. Assim, com um largo sorriso deu a posse aos rapazes, fazendo-lhes o aviso da amargura das nozes. Desciam então pelo caminho dos costeiros até aos oleiros da Cruz de Preda e lá, nova posse de caruma e pinhas para acender fogueirinhas na placa maior do burgo. Eram neste tempo estas as posses da terra o sustento dos rapazes, que mantinham a festa viva com matinas e novenas ao senhor S. Nicolau cantadas, por acordo da sossego na Capela da Senhora da Conceição, instalada no caminho do norte orientado para Bracara Augusta. As posses velhas desapareceram com o tempo que as apagou da estória, mas como o povo tem meméria, foram recuperadas há uma década pelas novas gerações tendo sido o Dízimo de Urgezes especialmente estudado e reproduzido, para que o presente e o futuro assim as entenda. O dízimo de Urgezes é pois, simbolicamente a posse mais antiga existente e, na cidade, a posse da saudade. Então Emanuel e Josias e Valério com os dois companheiros Hilário e Epifânio sabiam que tinham de dar entradas pela porta da colegiada antes de o sol nascer no dia sete. Estava cumprida a função. Com ela se construiu uma tradição que tem vida imaginário e sonho em muitas gerações de velhos estudantes de Guimarães. Este conto é dedicado a todas as gerações de nicolinos que ao amor, fraternidade e dedicação mantiveram viva as festas ao Senhor S. Nicolau. À AAELG - VN detentores da função vigilante.»
in, Contos e Lendas de Urgezes.
Um livro de Contos e de Lendas de Urgezes da autoria de Capela Miguel
Boa noite!